por Allan Kardec
Há outra palavra sobre a
qual igualmente devemos entender-nos, porque é uma das chaves de toda
doutrina moral e tem suscitado numerosas controvérsias, por falta de uma
acepção bem determinada; é a palavra alma. A divergência de opiniões
sobre a natureza da alma provém da aplicação particular que cada qual
faz desse vocábulo. Uma língua perfeita, em que cada idéia tivesse a sua
representação por um termo próprio, evitaria muitas discussões; com uma
palavra para cada coisa, todos se entenderiam.
Segundo
uns, a alma é o princípio da vida orgânica material; não tem existência
própria e se extingue com a vida: é o puro materialismo. Nesse sentido e
por comparação, dizem de um instrumento quebrado, que não produz mais
som, que ele não tem alma. De acordo com esta opinião, a alma seria um
efeito e não uma causa.
Outros
pensam que a alma é o princípio da inteligência, agente universal de que
cada ser absorve uma porção. Segundo estes, não haveria em todo o
universo senão uma única alma, distribuindo fagulhas para os diversos
seres inteligentes, durante a vida; após a morte, cada fagulha volta à
fonte comum, confundindo-se no todo, como os córregos e os rios retornam
ao mar de onde saíram. Esta opinião difere da precedente em que,
segundo esta hipótese, existe em nós algo mais do que a matéria,
restando qualquer coisa após a morte; mas é quase como se nada restasse,
pois não subsistindo a individualidade não teríamos mais consciência de
nós mesmos. De acordo com esta opinião, a alma universal seria Deus e
cada ser uma porção da Divindade; é esta uma variedade do Panteísmo.
Segundo
outros, enfim, a alma é um ser moral, distinto, independente da matéria e
que conserva a sua individualidade após a morte. Esta concepção é
incontestavelmente a mais comum, porque, sob um nome ou outro, a idéia
desse ser que sobrevive ao corpo se encontra em estado de crença
instintiva, e independente de qualquer ensinança, entre todos os povos,
qualquer que seja o seu grau de civilização. Essa doutrina, para a qual a
alma é causa e não efeito, é a dos espiritualistas.
Sem
discutir o mérito dessas opiniões e não considerando senão o lado
lingüístico da questão, diremos que essas três aplicações da palavra alma constituem três idéias distintas, que reclamariam cada uma um termo diferente.
Essa
palavra tem, portanto, significação tríplice, e cada qual está com a
razão, segundo o seu ponto de vista ao lhe dar uma definição; a falha se
encontra na língua, que não dispõe de mais de uma palavra para três
idéias. Para evitar confusões, seria necessário restringir a acepção da
palavra alma a uma de suas idéias. Escolher esta ou aquela é
indiferente, simples questão de convenção, e o que importa é esclarecer.
Pensamos que o mais lógico é tomá- la na sua significação mais vulgar, e
por isso chamamos ALMA ao ser imaterial e individual que existe em nós e sobrevive ao corpo. Ainda que este ser não existisse e não fosse mais que um produto da imaginação, seria necessário um termo para designá-lo.
Na falta de uma palavra especial para cada uma das duas outras idéias, chamaremos:
Princípio vital,
o princípio da vida material e orgânica, seja qual for a sua fonte, que
é comum a todos os seres vivos, desde as plantas ao homem. A vida
podendo existir, sem a faculdade de pensar, o princípio vital é coisa
distinta e independente. A palavra vitalidade não daria a mesma
idéia. Para uns, o princípio vital é uma propriedade da matéria, um
efeito que se produz quando a matéria se encontra em dadas
circunstâncias; segundo outros, e essa idéia é a mais comum, ele se
encontra num fluido especial, universalmente espalhado, do qual cada ser
absorve e assimila uma parte durante a vida, como vemos os corpos
inertes absorverem a luz. Este seria então o fluido vital, que,
segundo certas opiniões, não seria outra coisa senão o fluido elétrico
animalizado, também designado por fluido magnético, fluido nervoso etc.
Seja
como for, há um fato incontestável, pois resulta da observação: é que os
seres orgânicos possuem uma força íntima que produz o fenômeno da vida,
enquanto essa força existe; que a vida material é comum a todos os
seres orgânicos, e que ela independe da inteligência e do pensamento;
que a inteligência e o pensamento são faculdades próprias de certas
espécies orgânicas; enfim, que, entre as espécies orgânicas dotadas de
inteligência e pensamento, há uma dotada de um senso moral especial que
lhe dá incontestável superioridade perante as outras, e que é a espécie
humana.
Compreende-se
que, com uma significação múltipla, a alma não exclui o materialismo,
nem o panteísmo. Mesmo o espiritualista pode muito bem entender a alma
segundo uma ou outra das duas primeiras definições, sem prejuízo do ser
material distinto, ao qual dará qualquer outro nome. Assim, essa palavra
não representa uma opinião: é um Proteu, que cada qual ajeita a seu
modo, o que dá origem a tantas disputas intermináveis.
Evitaríamos
igualmente a confusão, mesmo empregando a palavra alma nos três casos,
desde que lhe ajuntássemos um qualificativo para especificar a maneira
pela qual a encaramos ou a aplicação que lhe damos. Ela seria então um
termo genérico, representando ao mesmo tempo o princípio da vida
material, da inteligência e do senso moral, que se distinguiriam pelo
atributo, como o gás, por exemplo, que se distingue ajuntando-se-lhe as palavras hidrogênio, oxigênio e azoto. Poderíamos dizer, e talvez fosse o melhor, a alma vital para designar o princípio da vida material, a alma intelectual para o princípio da inteligência, e a alma espírita
para o princípio da nossa individualidade após a morte. Como se vê,
tudo isto é questão de palavras, mas questão muito importante para nos
entendermos. Dessa maneira, a alma vital seria comum a todos os seres orgânicos: plantas, animais e homens; a alma intelectual seria própria dos animais e dos homens, e a alma espírita pertenceria somente ao homem.
Acreditamos
dever insistir tanto mais nestas explicações, quanto a Doutrina
Espírita repousa naturalmente sobre a existência em nós de um ser
independente da matéria e que sobrevive ao corpo. Devendo repetir
freqüentemente a palavra alma no curso desta obra, tínhamos de fixar o sentido em que a tomamos, a fim de evitar qualquer engano.
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